quarta-feira, maio 31, 2006
RETRATO
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha essas mãos sem força
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?
Cecília Meireles
terça-feira, maio 30, 2006
CENA FAMILIAR
Cena Familiar
Densa e doce paz na semiluz da sala.
Na poltrona, enroscada e absorta, uma filha
desenha patos e flores.
Sobre o couro, no chão, a outra viaja silenciosa
nas artimanhas do espião.
Ao pé da lareira a mulher se ilumina numa gravura
flamenga, desenhando, bordando pontos de paz.
Da mesa as contemplo e anoto a felicidade
que transborda da moldura do poema.
A sopa fumegante sobre a mesa, vinhos e queijos,
relembranças de viagens e a lareira acesa.
Esta casa na neblina, ancorada entre pinheiros,
é uma nave iluminada.
Um oboé de Mozart torna densa a eternidade
Affonso Romano de Sant’Anna
sábado, maio 27, 2006
PEGADAS NA AREIA
PEGADAS NA AREIA.
Uma noite eu tive um sonho... Sonhei que andava a passear na praia com o Senhor, e, no firmamento, passavam cenas da minha vida. Após cada cena que passava, percebi que ficavam dois pares de pegadas na areia: um era o meu e o outro era doSenhor. Quando a última cena da minha vida passou diante de nós, olhei para trás, para as pegadas na areia, e notei que muitas vezes, no caminho da minha vida, havia apenas um par de pegadas na areia. Notei também que isso aconteceu nos momentos mais difíceis e angustiosos do meu viver. Isso aborreceu-me deveras e perguntei então ao Senhor:
- Senhor, Tu disseste-me que, uma vez que resolvi seguir-Te, Tu andarias sempre comigo, em todos os caminhos. Contudo, notei que durante as maiores tribulações do meu viver, havia apenas um par de pegadas na areia. Não compreendo porque é que, nas horas em que eu mais necessitava de Ti, Tu me deixaste sozinho.
- Meu querido filho, jamais te deixaria nas horas da prova e do sofrimento. Quando viste, na areia, apenas um par de pegadas, eram as minhas, no exato momento em que eu te carregava no colo.
quinta-feira, maio 18, 2006
Amar a Morte
Amar de peito aberto a morte.
Não de esguelha, de frente.
Amar a morte,
digamos,
despudoradamente.
Amá-la como se ama
uma mulher bela
e inteligente.Amá-la
diariamente
sabendo que por mais
que a amemos
ela se deitará
com uns e outros
indiferente.
Affonso Romano de Sant’Anna
terça-feira, maio 16, 2006
Um presente
Se alguém chega até você com um presente, e você não o aceita,
a quem pertence o presente? - perguntou o Samurai.
A quem tentou entregá-lo. - respondeu um dos discípulos.
O mesmo vale para a inveja, a raiva, mágoas e os insultos.- disse o mestre.
Quando não são aceitos, continuam pertencendo a quem os carrega consigo.
A sua paz interior, depende exclusivamente de você.
As pessoas não podem lhe tirar a calma, só se você permitir...
domingo, maio 14, 2006
Nazim Hikmet
quinta-feira, maio 11, 2006
PARA SEMPRE
Para minha mãe que já não se encontra entre nós.
PARA SEMPRE
Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.
Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.
Carlos Drummond de Andrade
quarta-feira, maio 10, 2006
Está escuro lá fora.
Está escuro lá fora.
Não, é dia ainda
A escuridão existe somente em mim
A luz apagou.
Tudo são sombras.
Ah, pobre mundo meu, tão cheio de sonhos
Feitos de nada
Não,
Hoje eu sou só, com todas as luzes apagadas
Há sombras rodeando tudo
Busco luz
Procuro ar:
meu ser já não consegue respirar
Se vivo ainda é por lembrar o passado
e luto, luto
E procuro esquecer.
Mas as sombras existem...estão em tudo
Eu mesma já me tornei sombra!
Jeanny Hartley
quinta-feira, maio 04, 2006
O Menino de sua Mãe
O Menino da sua Mãe
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
¿ Duas, de lado a lado ¿,
Jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
É boa a cigarreira,
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.
Fernando Pessoa
quarta-feira, maio 03, 2006
Fim de Tarde
Fim de tarde
Fim de tarde.
Sol se pondo
Eu aqui sentada olhando...
Fim de vida.
Sentimento horrível de tanta perda
De casa que passou, que se foi.
Tantas perdas.
Fim de tarde, fim de vida e ainda tantas mágoas.
Coloco um ponto e o ponto não é ponto final.
Abro portas e outras ainda não estão completamente fechadas.
Firo, marco, magôo. Sem querer magoar.
Procuro, procurei tantas vezes não fechar antigas portas.
Ah. Como elas são especiais!
Gosto de passado na boca. Na pele. No corpo.
Cheiro de morte, de estar morrendo.
Vontade de quase morrer para não ver, não ouvir, não sentir.
Fugiu de mim a vida.
Foge a vontade de viver.
Jeanny Hartley
Eu preciso continuar
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